
POR H. GUTHER FAGGION
O escritor e conferencista Ed René Kivitz fala, em entrevista
exclusiva, sobre seu novo livro, Outra espiritualidade.
A obra reúne 54 artigos publicados
originalmente na revista
Eclésia (Bompastor), na época em que assinava a coluna
Diálogo. Pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo (SP), Ed René usa sua capacidade de articulação
para analisar o atual estado da fé evangélica no Brasil. E não poupa críticas: "aquilo que está presente na mídia radiofônica e televisiva como caracteristicamente evangélico, é na verdade um movimento neo-evangélico, que deixa os próprios evangélicos
de tradição histórica de cabelo em pé".
Hoje é possível observar que existe no Brasil evangélico uma certa sedução pelas megaigrejas e por modelos gerenciais
pasteurizados para obter sucesso numérico e atender às necessidades do fiel-cliente. Fala-se na importância dos relacionamentos, mas como política relacional de fidelização, e não essencialmente
para a construção espiritual e teológica mais densa. No Brasil também é preciso conviver com características culturais que invadiram as igrejas locais, como o caudilhismo e o nepotismo. Como você observa o cenário da igreja cristã para o século 21 do ponto de vista da espiritualidade?
As igrejas, em sua dimensão institucional
e religiosa, continuarão a ser um extraordinário business. Poderão sempre ser gerenciadas como grandes lojas de departamentos, cruzando as características
e necessidades dos clientes e focando na satisfação dos anseios de seu público. Por essa razão, vejo um futuro próximo bem próspero para o modelo institucional-
metodológico-gerencial-marketeiro. Mas também vejo o crescimento de um público que busca uma experiência mais pessoal, relacional, íntima, autêntica, devocional, menos pragmática e mais mística, que fale mais à alma e ao coração
que à cabeça. A Europa, considerada pós-cristã, é um bom exemplo de que a combinação produto-massificação é ótima para relações de mercado
e péssima para a dimensão da fé e da espiritualidade. As igrejas que conseguirem
se articular em termos de pequenas comunidades de relacionamentos afetivos, e que oferecerem
um ambiente para a peregrinação espiritual onde Deus é “descoberto” (ou revelado) no caminho, na experiência pessoal
passo-a-passo, continuarão a fazer diferença no que tange à propagação do cristianismo.
O século 20 foi fértil para o racionalismo. Porém, entramos no século 21 com a revigoração
das questões espirituais e, de certa maneira, a admissão de que existe “algo” além do materialismo. Ciência e razão deixaram de ser contrapontos para a espiritualidade?
Gosto de Tertuliano: “Creio porque é absurdo”. Uma das razões porque sou cristão é porque o cristianismo não é lógico, mas paradoxal — deixa muitas perguntas sem respostas. Não é um sistema fechado, pois o Deus revelado continua habitando em luz inacessível e se apresentando como Mistério. As estruturas religiosas são absolutamente
lógicas, têm explicação para tudo, e todas as suas explicações são adequadas às conveniências humanas. O cristianismo é loucura de Deus, mais sábia que a sabedoria
humana. De fato, o cristianismo não cabe nas categorias cartesianas da ciência moderna. Mas é também verdade que nem a ciência é mais tão moderna assim, nem o cristianismo é despido de razão. O cristianismo é paradoxal, complexo
em sua simplicidade, e simples em sua complexidade, mas não é irracional. Crer é também pensar, disse John Stott. A ciência, por sua vez, já não se encaixa em categorias tão exatas como alguns desejam, basta verificar a revolução da física quântica. Por isso, ciência e fé já não estão em campos opostos, como na modernidade. É preciso fé para fazer ciência e razão para ter fé. Fazer ciência implica uma dimensão de aposta. Andar por fé implica bom senso, ainda que o bom senso de vez em quando nos exija passos de fé.
Poderíamos dizer que o pós-modernismo empurra as questões religiosas para o relativismo
e a secularização?
Antes da resposta, vale uma explicação simples. A pré-modernidade, também chamada idade das trevas, tinha Deus no centro do universo e a Igreja Romana como referência absoluta para a cultura ocidental. A idade moderna, ou idade da razão, tinha o homem no centro como a medida de todas as coisas. A pós-modernidade, por sua vez, não tem nada no centro, isto é, “cada cabeça uma sentença”. Justamente por isso pode-se dizer que a pós-modernidade empurra as questões para o relativismo (não existem verdades absolutas) e o subjetivismo (não existe autoridade externa à consciência individual).
Nesse sentido, a pós-modernidade se constitui uma ameaça e uma oportunidade
ao cristianismo. Ameaça porque o cristianismo não é uma religião de especulação,
mas de revelação, isto é, não depende do que eu acho, mas da crença no fato de Deus revelado a si mesmo, e nesse caso, o conteúdo da revelação tem autoridade em si mesmo, e independe de minhas intuições, percepções e experiências.
Para uma cultura que não acata a autoridade senão a de cada consciência individual, é complicado falar de um Deus que se revela e oferece uma baliza objetiva
como régua para a verdade.
Em contrapartida, a pós-modernidade traz consigo um desencantamento com a modernidade, isto é, com o paradigma do materialismo científico, que compreendia
como verdade apenas aquilo que fosse passível de demonstração e apropriação racional. Nesse sentido, a pós-modernidade, com a valorização da subjetividade, abre um espaço enorme para a busca e redescoberta, ou reencantamento,
da espiritualidade, constituindo-
se assim em grande oportunidade para o cristianismo.
Existe um contingente cada vez maior de gente extremamente decepcionada com os rumos da fé evangélica, o que se reflete no avanço de dois grupos religiosos
distintos: os que têm fé sem religião
e os evangélicos não-praticantes. O livro foi uma experiência premeditada (com vistas a estes grupos) ou faz parte de uma evolução pessoal no seu modo de ver a espiritualidade?
O livro não foi construído de maneira premeditada. Na verdade, é uma coletânea de 54 artigos publicados originalmente
na revista Eclésia, ao longo dos anos em que assinei a coluna Diálogo. Mas de fato, é possível observar
as duas coisas: demonstra uma evolução do meu pensamento e foi escrito tendo em vista esse público ávido por uma experiência espiritual menos encabrestada
pela religião — seus dogmas, ritos e códigos morais legalistas.
Acabo de receber relatório de uma pesquisa
feita nos Estados Unidos indicando o novo perfil das igrejas. A se manter a tendência, em 2025 as igrejas tradicionais,
que hoje representam 75% do total, serão apenas 35%, enquanto as igrejas alternativas e emergentes sairão de 30% para 70%. Já posso ouvir os analistas mais conservadores dizendo que a sociedade está em busca de um evangelho que não fale de pecado, descomprometido com a cruz, de tendência liberal. Mas vejo com outros olhos. Acredito que a sociedade está em busca de uma experiência espiritual
mais autêntica, livre da intolerância, do dogmatismo sectarista, do ritualismo sem vida e do moralismo hipócrita.
Como as pessoas têm reagido em relação a essa idéia de outra espiritualidade?
O livro ainda nem esquentou nas prateleiras
e já ouvi pessoas dizendo que estou abandonando a espiritualidade bíblica, querendo outro deus diferente do Deus da Bíblia e coisas do tipo. Na verdade, quero a espiritualidade bíblica. Quero o Deus da Bíblia. O que não quero é a espiritualidade
dos evangélicos, nem o Deus dos evangélicos. E antes que alguém se aventure a colocar palavras em minha boca, esclareço que a expressão “outra” se refere exatamente ao que chamo de “senso comum da espiritualidade evangélica”,
ou seja, aquilo que está presente
na mídia radiofônica e televisiva como caracteristicamente evangélico, sendo na verdade um movimento neo-evangélico, que deixa os próprios evangélicos de tradição
histórica de cabelo em pé.
0 Comentar